Lançamento “Brasiliana Museus”

O lançamento de um "serviço de busca integrada em acervos culturais", operado com tecnologia nacional — Tainacan — desenvolvido em software livre, representa um marco importante na trajetória das políticas públicas para acervos digitais.

Post publicado originalmente no blog do “Brasiliana Museus”.

O tema dos acervos digitais de cultura no Brasil ainda não recebeu a devida atenção por parte do poder público, assim como outras dimensões da política pública de cultura. Entretanto, diretrizes estabelecidas nas gestões do Ministério da Cultura de Gilberto Gil, de Marta Suplicy e de Juca Ferreira, no âmbito das políticas de cultura digital, lograram semear boas iniciativas em espaços institucionais que se mostraram favoráveis à sua preservação e ao seu desenvolvimento.

Estamos falando do “Programa Acervo em Rede”, criado no Ibram em 2013 para promover a digitalização e a documentação dos bens musealizados para publicação em rede, e também do “Projeto Tainacan”, que surge em 2014 a partir de cooperação do MinC com a Universidade Federal de Goiás (UFG) para o desenvolvimento de um protótipo de repositório para acervos digitais de cultura em software livre.

Para melhor ilustrar o cenário deste campo específico dos acervos digitais de cultura no Brasil neste século, é pertinente recuar um pouco mais na linha do tempo das iniciativas no setor.

Claudio Prado (MinC) e Carlos Afonso (CGI.br) no “Seminário para Conteúdos Digitais na Internet”, do Comitê Gestor da Internet em parceria com o MinC em 2007.

Promovido pelo Comitê Gestor da Internet (CGI.br) em 2007, o “Seminário para Conteúdos Digitais na Internet” (vídeo) reuniu um universo abrangente de atores relevantes do campo dos acervos culturais. Neste encontro foi desenvolvido um protocolo de intenções entre o CGI e o MinC com vistas a “aumentar a quantidade e a qualidade de informações online sobre a cultura brasileira”. O documento produziu diretrizes, incluíndo temas como a importância da articulação interinstitucional, a definição de padrões de metadados interoperáveis e o uso de software livre, dentre outros, com a intenção de se tornar o guia para um plano de ações rápidas a ser implementado nos anos seguintes.

No Ministério da Cultura, a partir de 2003 e até 2010, a gestão Gil demonstrou entendimento sobre o potencial emergente da Internet e explorou de maneira intensa a cultura das redes, impulsionando programas como o Cultura Viva, conhecido pelos Pontos de Cultura e pelos Pontos de Memória, e também pelo uso de software livre e de licenças autorais alternativas, como o Creative Commons. A realização do “Fórum da Cultura Digital Brasileira“, em 2009, em parceria do MinC com a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), oportunizou reflexões em rede sobre o tema “Memória Digital”, evidenciando a demanda por uma política nacional para acervos digitais. Importante mencionar também que nesse ano (2009) foi criado o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), um momento crucial para o início da reflexão sobre políticas para memória digital.

O “Simpósio Internacional de Políticas Públicas para Acervos Digitais” estabeleceu o primeiro esboço da Política.

Em 2010, a realização do Simpósio Internacional de Políticas Públicas para Acervos Digitais (SIPPAD), em parceria do Ministério da Cultura (MinC), com o Projeto Brasiliana-Mindlin, da USP, e a Casa de Cultura Digital (SP), resultou no primeiro esboço de uma política pública, sintetizada no documento “Políticas públicas para acervos digitais. Propostas para o ministério da cultura e para o setor” (TADDEI, 2010). Na perspectiva da Coordenação-Geral de Cultural Digital, na Secretaria de Políticas Culturais do MinC, o cenário era favorável, e apontava uma década produtiva para o campo dos acervos digitais.

Ainda em 2010, foi promulgado o Plano Nacional de Cultura, que em sua meta 40 — a qual deveria ser realizada até 2020 — previu a disponibilização completa na internet dos conteúdos que estivessem em domínio público ou licenciados:

  • das obras audiovisuais do (Centro Técnico Audiovisual) CTAv e da Cinemateca Brasileira;
  • do acervo da (Fundação Casa de Rui Barbosa) FCRB;
  • dos inventários e das ações de reconhecimento realizadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan);
  • das obras de autores brasileiros do acervo da (Fundação Biblioteca Nacional) FBN;
  • do acervo iconográfico, sonoro e audiovisual do Centro de Documentação da Fundação Nacional de Artes da Fundação Nacional de Artes (Cedoc/Funarte).

Além disso, o Plano Nacional de Cultura (PNC) estabeleceu, na meta 41, que todas as bibliotecas e 70% dos museus e dos arquivos deveriam disponibilizar informações sobre seus acervos no Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais. O objetivo foi justamente o de facilitar “o acesso de toda a sociedade ao conteúdo dessas instituições, o que também contribui com a difusão da informação sobre a cultura no país”. Apesar de ainda estarem longe de serem cumpridas, essas metas são marcos importantes para o balizamento das políticas públicas em torno dos acervos digitais no país.

Hoje, podemos constatar que a interrupção do MinC, e das políticas de cultura, causou um atraso considerável nas perspectivas estabelecidas para o campo no período anterior. Mas ainda em 2013, a publicação do edital de “Preservação e Acesso aos Bens do Patrimônio Afro-Brasileiro”, lançado pelo MinC na gestão de Marta Suplicy em cooperação com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), levou o ministério a prospectar modelos de gestão para a inovação, e para a realização do protótipo de tecnologia que poderia promover a interoperabilidade entre acervos de arquivos, bibliotecas e museus.

O edital Afro-Digital buscou selecionar projetos de coleta, de resgate, de recuperação, de conservação e de disponibilização de acervos para o acesso público em meio digital.

O edital, conhecido como Afro-Digital, buscou selecionar projetos de coleta, de resgate, de recuperação, de conservação e de disponibilização de acervos para o acesso público em meio digital. O desafio colocado era a concepção da tecnologia, que deveria ser simples e acessível, mas potente o suficiente para promover o diálogo entre as coleções museológicas, arquivísticas e bibliográficas, no mesmo tema da cultura Afro. A parceria com o Laboratório L3P (Políticas Públicas Participativas) da Universidade Federal de Goiás (UFG) foi crucial para o desenvolvimento da solução tecnológica em software livre — Tainacan — que sustentaria a proposta de uma política integrada pelo MinC. O resultado do edital Afro-Digital foi publicado em uma das primeiras versões do software Tainacan: “Acervo da Cultura Afro Brasileira – MinC / UFG / UFPE“.

Com a extinção do MinC em 2016, o Ibram torna-se parceiro direto e principal mantenedor do Projeto Tainacan, tomando para si a visão estratégica de reunião das instituições do Sistema MinC em torno de uma iniciativa de rede integradora. O esforço do Ibram em manter o diálogo técnico de diferentes níveis com especialistas da Europeana, instituição que realiza projeto de referência no campo dos acervos digitais em rede no âmbito da União Europeia, foi de suma importância na formatação do Projeto Tainacan.

“Digital Libraries Quarterly Meeting”: estratégias e iniciativas conjuntas em prol da interligação dos acervos digitais de patrimônio cultural a nível global.

Dentre as principais articulações, vale mencionar a inclusão do Ibram (Projeto Tainacan) como representante do Brasil no “Digital Libraries Quarterly Meeting”, encontro virtual periódico que entre 2016 e 2018 reuniu os coordenadores executivos das principais bibliotecas digitais globais na época, a Europeana (Europa – Jill Cousins), a Digital Public Library of America (EUA – Dan Cohen), Trove – National Library of Australia (Deirdre Kioorgard), e DigitalNZ (Nova Zelândia – Andy Neale), para o desenvolvimento de estratégias e de diretrizes conjuntas.

O tema recorrente nas reuniões das “Bibliotecas Digitais” foram estratégias e iniciativas conjuntas em prol da interligação dos acervos digitais de patrimônio cultural a nível global. Todas essas iniciativas internacionais apontam para o modelo de integração dos acervos de diferentes instituições culturais, contando com a colaboração entre os parceiros na permanente evolução nos serviços de exploração e na busca contextual.

No Ibram, o esforço da Coordenação-Geral de Sistemas de Informação Museal (CGSIM) em realizar o Programa Acervo em Rede e impulsionar o Projeto Tainacan em cooperação com o campo da Ciência da Informação de universidades federais, em pleno período de recrudescimento das políticas de cultura, resultou na oportunidade deste lançamento significativo. O diálogo com a universidade infundiu a lógica dos ‘acervos em rede’ no processo, que acrescenta alguns aspectos novos aos protocolos de digitalização até agora desenvolvidos por instituições de memória. Saindo da posição isolada (fora da rede), onde a preocupação central era o armazenamento, a organização, a rotulagem, a preservação e a difusão de seus conteúdos, as instituições de memória passam a incorporar o elemento “rede” como paradigma de organização e integração dos acervos digitalizados.

Margareth Menezes, Ministra da Cultura, e Fernanda Castro, Presidenta do Ibram

Com o início da gestão de Margareth Menezes no MinC em 2023, e a indicação de Fernanda Castro para assumir a presidência do Ibram, as iniciativas do Programa Acervo em Rede que haviam se mantido com escopo restrito assumem nova dimensão. A nova gestão na CGSIM incorpora o Modelo de Gestão para a Inovação em Software Livre (baseado em métodos Ágeis), e reconstrói a capacidade do Ibram em operar políticas públicas de Cultura Digital de maneira autônoma. O processo de reestruturação em curso prioriza a aproximação da Tecnologia da Informação com a Ciência da Informação, e inspira uma concepção moderna para o futuro do Ibram, voltado ao desafio de garantir a preservação do patrimônio cultural em meio digital para gerações futuras.

A chegada do “Brasiliana Museus” ao campo museal, neste contexto, apresenta um caminho e um modelo para a organização dos acervos em rede. Inicialmente desenhado como um agregador restrito aos museus Ibram, à partir de determinações de Margareth e Fernanda o “Brasiliana Museus” estará, já no momento de seu lançamento em 12/09/2023, recebendo inscrições de museus brasileiros interessados em fazer parte da Rede. Entendemos que a gestão deste processo de integração, o qual tende a ocorrer em ambiente conectado que favorece a governança colaborativa, deve contemplar instâncias de participação e construção de consensos entre as instituições envolvidas. Ao Ibram, como instância de promoção dos padrões de interoperabilidade para acervos digitais de museus, interessa estabelecer uma política de informação para acervos em rede.

O lançamento do serviço “Brasiliana Museus — a plataforma do patrimônio museológico brasileiro” ocorre no próximo dia 12 de setembro de 2023, no Museu Paulista em São Paulo. Trata-se da primeira experiência de agregação de acervos culturais a partir de uma política pública em software livre (tecnologia Tainacan), alinhada com as diretrizes nacionais elaboradas anteriormente em consenso com o campo, e em sintonia com as principais experiências internacionais.

Trata-se de marco importante na trajetória das políticas públicas para acervos digitais.