Ao receber a encomenda de realizar o texto que saúda o lançamento do “Brasiliana Museus”, agora em 2023 aqui no Instituto Brasileiro de Museus, não pude deixar de lembrar de como em 2015, no MinC de Juca Ferreira, preparávamo-nos para lançar uma Política Nacional para Acervos Digitais.
Juca havia solicitado a minuta de um “artigo para jornal” de forma a estabelecer a posição do MinC sobre o necessário avanço nesta pauta crucial para as políticas públicas de Cultura Digital. Devo lembrar que na época, em abril de 2015, o ministro havia comprado briga com o Facebook por conta da censura de uma foto de indígenas brasileiras (acima):
O Ministério da Cultura decidiu acionar judicialmente o Facebook, depois que a foto de um casal de índios botocudos foi censurada pela rede social. A foto, feita em 1909, por Walter Garbe, foi postada na página institucional do ministério, no dia 15, à tarde, e sua retirada foi percebida na manhã de ontem (16), com o aviso de que, por regras internas, a foto tinha sido bloqueada.
“Nós colocamos a foto na nossa página do Facebook para convidar as pessoas a irem visitar a exposição, e o Facebook tirou, censurou a foto”, disse hoje (17) o ministro Juca Ferreira. Para ele, a atitude foi um desrespeito à legislação brasileira, ao Estatuto Indígena e também às regras da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que pregam a diversidade de manifestações culturais e o respeito às singularidades.
Ministério da Cultura aciona Facebook por censurar foto de casal indígena (Agência Brasil — 17/04/2015)
Alguns dias depois do ocorrido, em texto publicado originalmente em inglês no site CulturaDigital.br, Juca formula o que ele aponta como ajustes necessários nas políticas públicas de cultura digital:
Um ponto de partida essencial, a meu ver, é parar de afirmar apenas uma noção positiva generalizada sobre cultura digital e pensar mais especificamente sobre que tipo de cultura digital realmente queremos e precisamos. Que tipo de sociedade gostaríamos de ver gerada a partir dessa onipresença das tecnologias de informação e comunicação em nosso cotidiano? Acredito que parte do papel do Ministério da Cultura é retomar o que iniciamos em 2003, atualizando-nos institucionalmente para orientar a formação de programas sólidos e permanentes que promovam a inovação cidadã e o desenvolvimento de tecnologias abertas e livres. A cultura e a arte são essenciais para a criação de tecnologias comprometidas com qualquer futuro planetário. Mas qual futuro desejamos? A meu ver, resgatar uma visão significativa da cultura digital em um mundo de intensas e rápidas mudanças exigirá novas políticas, programas e ações que afirmem o interesse público sobre os interesses comerciais, valorizando a diversidade cultural e permitindo a expressão das múltiplas vozes políticas e culturais do nosso país. E devemos fazer isso em diálogo com o mundo.
“It’s Time to Rethink Digital Culture”, Juca Ferreira (CulturaDigital.br— 10/05/2015)
Internamente, o ministro provocava os setores envolvidos com o tema da cultura digital:
Recentemente promovi no MinC um encontro entre pessoas que se destacam como ativistas do campo da cultura digital, pessoas qualificadas e interessantes, e que aqui no Brasil realizam considerável movimento político. Na oportunidade, em nossa apreciação do cenário atual, chegamos à conclusão que depois do sonho, a realidade pode ser sinistra. Em algum momento da conversa fiz uma provocação: Será que ainda somos hackers?
Ainda somos hackers?, Juca Ferreira (Registro de reunião 13/05/2015)
Demonstrando sua preocupação em relação ao domínio das empresas de BigTech, o ministro apontava o problema que o quase monopólio no serviço de busca, por exemplo, estabelece para a promoção e preservação da diversidade cultural.
Existem situações de quase monopólio em serviços fundamentais da rede, que precisam ser enfrentadas com medidas práticas no âmbito da regulação do direito à concorrência, e também através de implementação de infraestrutura estratégica e de serviços digitais públicos. A questão do serviço de busca chega a ser um escândalo. A sociedade do conhecimento do século 21, baseada no acesso digital a conteúdos, não pode depender de forma quase exclusiva de um serviço de busca e recuperação de conteúdos que funciona de acordo com algoritmos desenvolvidos de forma não-transparente por uma empresa global com base nos Estados Unidos.
Ainda somos hackers?, Juca Ferreira (Registro de reunião 13/05/2015)
Em diálogo com o ministro sobre possíveis iniciativas no âmbito da política pública que pudessem se contrapor ao poderio das empresas BigTech, levantamos alguns aspectos. Hoje, os argumentos parecem pertinentes, e revelam avaliações que se mostraram corretas com o tempo.
Veja, estamos falando do algoritmo, desta peça de código, de software, que hoje cumpre de forma quase exclusiva o papel de definir o grau de pertinência (e visibilidade) de toda a documentação referente à cultura e ciência humanas disponível na internet. No mundo ideal que enxergo, tal peça de software deveria ser objeto de um comitê de governança compartilhado, como o nosso CGI.br. Tal algoritmo seria algo a ser permanentemente aperfeiçoado, de forma transparente, por uma comissão que tivesse como referência os princípios da Convenção da Unesco de Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais. Ou então, que a base de índices de conteúdos fosse pública, e cada um pudesse aplicar sobre o conteúdos da rede o algoritmo de busca que bem entender.
Ainda somos hackers?, Juca Ferreira (Registro de reunião 13/05/2015)
A preocupação com a prevalência do algoritmo na determinação da visibilidade de conteúdos culturais é uma questão de política pública de cultura digital, e o MinC de 2015 abordava tais questões de maneira pertinente. Como resultado, no início de 2016 a Coordenação Geral de Cultura Digital havia preparado uma minuta de artigo a ser assinado pelo ministro Juca Ferreira.
A ideia foi, como falamos no início do texto, promover a proposta e demonstrar a necessidade de uma Política Nacional para Acervos Digitais, e eu, como Coordenador-geral de Cultura Digital do MinC, fui encarregado de produzir a minuta. Como registro histórico, considero relevante compartilhar a minuta, a qual não chegou a ser apreciada pelo ministro, para conhecimento público.
O texto buscou refletir as preocupações que o ministro expressava em conversas e reuniões sobre o curso das questões candentes da pauta digital, e o esforço da equipe em traduzir as ações de mitigação para tais questões em políticas públicas digitais.
Acervos digitais de cultura e os caminhos para uma política nacional
V 2.2–11/03/2016
Existe um campo da política pública no Brasil que ainda não surgiu, o qual arrisco dizer está entre os setores mais importantes para o país nesta era da cultura digital. Trata-se da organização e publicação integrada dos acervos digitalizados de bibliotecas e museus.
Desde a virada do século, e particularmente a partir de 2002, as instituições de memória em todo o mundo, como bibliotecas, arquivos, cinematecas e museus, foram inapelavelmente impactadas pelo ‘tsunami digital’, e deixaram de cumprir inteiramente o seu papel de registrar e preservar as culturas do tempo presente para as gerações futuras.
Algumas iniciativas de digitalização de acervos da cultura nos EUA e na Europa vêm realizando avanços importantes em relação às coleções já existentes nas instituições, mas permanece um problema imaginar que muito do que acontece em nossa cultura hoje é gerado em formato digital, e não existem ainda iniciativas públicas estruturadas para garantir que estes conteúdos sejam preservados para o acesso de nossos descendentes. Eu diria que esta é uma questão de política pública internacional!
De acordo com os cálculos da IBM, desde o ano de 2003, e retrocedendo até o início da história humana, geramos um total de cinco exabytes — cinco bilhões de gigabytes — de informação.
Entretanto, como cada um de nós hoje carrega um computador no bolso, e coletivamente produzimos vários megabytes em registros diários, por meio de textos, fotos e vídeos, já em 2015 estávamos produzindo esta mesma quantidade de dados a cada dois dias. Nos próximos anos, estaremos gerando tal volume a cada 10 minutos!!
A pergunta é: estamos sendo bons ancestrais? O que estamos fazendo hoje para selecionar e preservar os bits que realmente importam, de forma que possam ser recuperados pelas gerações futuras?
Iniciativas que atualmente detêm os dados que circulam na rede são empresas com fins lucrativos, que não apresentam o perfil de instituições que irão sobreviver centenas de anos, como é o caso de universidades, bibliotecas, arquivos e museus.
A integração dos processos de digitalização destes acervos, e a garantia da disponibilidade de acesso público a estas coleções digitais no futuro, é ainda um desafio tremendo de infra-estrutura. Trata-se de lance crucial no processo de retomada da internet como espaço público.
O Ministério da Cultura entende o seu papel, e busca realizar o protagonismo na integração dos acervos culturais públicos. Mas é fundamental que se construa uma política de estado afinada, contemporânea e sustentável para os acervos digitais brasileiros.
Aqui estamos, com o apoio de universidades brasileiras (UFPE e UFG) e em diálogo estreito com a biblioteca digital Europeana, trabalhando na criação de métodos, aplicações e arranjos participativos para a curadoria social do conhecimento, a ser preservado em formato digital, assim como no desenvolvimento de tecnologias essenciais para garantir a integração entre acervos de instituições diversas e o acesso a estas coleções no longo prazo.
Além da cultura institucional
É óbvio que a diversidade da cultura brasileira vai muito além dos conteúdos preservados em bibliotecas e museus, e em cada cidadão do século 21 temos um criador digital em potencial.
Para nós é importante enfatizar também o papel central que usuários da web, em seus mais diversos níveis de especialização técnica, passam a desempenhar na classificação, contextualização e visibilidade das coleções digitalizadas disponibilizadas na Internet, o que chamamos de ‘curadoria digital social’.
O desenvolvimento de iniciativas de digitalização de acervos da cultura Afro-Brasileira, e também de acervos de Povos Originários do Brasil, realizadas recentemente pelo MinC, provocaram a emergência de insumos importantes. Demonstram a potência da memória oral da cultura brasileira, a qual encontra no meio digital novas formas de expressão e documentação.
Tais iniciativas, que oportunizam a digitalização de conteúdos ainda não organizados em coleções institucionalizadas, têm servido de piloto e modelo operacional que induzem o compartilhamento de recursos tecnológicos e humanos, integrando instituições e projetos de pesquisa no uso de soluções comuns para a digitalização e disponibilização de suas coleções, que já nascem integradas.
A estratégia do MinC prevê a entrada de novos conteúdos neste ‘ecossistema’ através de editais, parcerias, e ações colaborativas de curadoria em rede. O projeto contempla a implementação de serviço integrado de busca sobre as coleções publicadas, em acordo com a solução de interoperabilidade proposta para a política nacional — o que seria o primeiro serviço de busca público para acervos digitais da cultura brasileira.
Trata-se de um resultado estratégico, que promove a inserção do Brasil entre as nações que operam a Internet na dimensão dos algoritmos.
A dimensão dos algoritmos
Ainda não é óbvio para a maioria das pessoas que o acesso a conteúdos em meio digital hoje é, via de regra, mediado pelos sistemas algorítmicos das grandes empresas da internet. A busca que você faz, o que você vê na sua rede social, a sugestão para o filme ou série a assistir, indicações para playlists de música… no mundo digital, há sempre um algoritmo entre você e a fruição do bem cultural que você ‘seleciona’.
Não temos a menor dúvida quanto à necessidade de um ‘choque de transparência’ neste campo dos filtros algorítmicos, no âmbito das empresas de internet. É necessário qualificar, e sempre atualizar a nossa compreensão sobre o que de fato acontece no veloz mundo digital.
A prerrogativa para a operação da internet na dimensão do algoritmo é ter acesso aos dados. Tudo começa na base de dados, e os nossos museus, arquivos, cinematecas e bibliotecas ainda não produzem estas bases de dados da cultura brasileira digitalmente organizadas e integradas.
É por este motivo que propomos uma Política Nacional para Acervos Digitais de Cultura, que vislumbre a possibilidade da criação desta base de índices da cultura brasileira, de maneira pública e aberta, disponível como plataforma de pesquisa e inovação “na dimensão do algoritmo”. Entendo que este é um importante legado para as gerações futuras.