Este texto foi originalmente redigido em setembro de 2011 como um comentário às “Provocações iniciais sobre conteúdos digitais e compartilhamento” de Rodrigo Savazoni, no espaço do I Forum da Internet do Brasil. do Comitê Gestor da Internet – CGI.br.
Vide a “Contextualização do blogueiro” (abaixo).
“Muito bom ver o debate começando por aqui! Aliás, esta iniciativa de um Fórum aberto do CGI.br já estava mais do que madura para acontecer, e vem em momento importantíssimo. Que bom!
Sobre esta questão da “nova ecologia da distribuição da informação e do conhecimento”, sobre a qual temos refletido e debatido com afinco, me parece claro algumas coisas:
Tudo se encaminha para a situação em que alguns grandes players do mercado tenham o controle sobre os padrões e protocolos que irão formatar o “jeito” como as coisas irão se dar no mundo digital do século 21.
A revolução da Abertura (openness), no que se refere ao acesso aos conteúdos digitalizados na rede, trouxe um novo fôlego para processos culturais valiosos, e proporciona as ferramentas básicas para este novo estágio da civilização — a cultura p2p.
Mas estamos diante de um processo de desenvolvimento distorcido, que se por um lado inclui e empodera amplas fatias da sociedade, por outro tem gerado uma acumulação indevida por parte dos grandes agregadores da rede.
Operados com a lógica do mercado, e subordinado a interesses geopoliticos, estes grandes players seguem avançando em escala global, e assim acumulando poder de definição dos padrões que irão cada vez mais formatar o ecossistema da rede.
Em meio a esta reflexão, que talvez se relacione com outras trilhas do Fórum, lancei uma pergunta no G+: Quem é que pode definir padrões hoje na rede?
Me chamou atenção este caso do Google lançar uma alternativa ao javascript, e foi para mim a evidência de que os grandes da rede são os que hoje podem bancar novos padrões. São estes mesmos gigantes, corporações estrangeiras como o Facebook, que gerenciam os grandes ambientes das redes sociais, dominando assim o processo estratégico de desenvolvimento destes protocolos que irão formatar a inter-relação via rede no século 21.
Neste cenário, imagino se seria possível a uma iniciativa pública, apoiada pelo estado mas governada de forma compartilhada com a sociedade, propor um protocolo básico extensível que viabilizasse a criação de uma plataforma pública aberta e comum.
Fico imaginando se algo como o Diáspora fosse adotado por um arranjo institucional como este. Seria possível alavancar um protocolo aberto e distribuído de identidade (open – user-centric – identity) como plataforma pública nacional?
E porque estou falando de open identity? Porque será através de um protocolo de identidade digital público e aberto, centrado nas demandas de privacidade e de direitos autorais dos usuários, que poderemos criar as bases da economia p2p. Entretanto, são estes os protocolos estratégicos que estão sendo apropriados e dominados pela visão de corporações norte-americanas.
Estamos neste momento acompanhando a tramitação da proposta da nova lei de direito autoral. Nela está inserido dispositivo que orienta a criação da plataforma de registro autoral, que projeta o grande banco de referências e links de toda a cultura.br.
Ao mesmo tempo, estamos vivendo um processo intenso de digitalização das coleções históricas de arquivos, bibliotecas, cinematecas, centros de pesquisa. A catalogação e disponibilização integrada destes acervos, aliada a metadados que possam prever formas de licenciamento inovadoras, viabiliza um cenário onde é possível gerar novos fluxos de retribuição autoral.
E por outro lado, cada vez mais os cidadãos brasileiros se transformam em usuários especialistas destes ambientes de mídias sociais, onde hoje efetivamente são desenvolvidos as aplicações e serviços baseados em identidade. Tais aplicações são orientadas ao aperfeiçoamento das estratégias publicitárias que financiam estes empreendimentos, mas ainda sim, é nestes espaços que efetivamente ocorre a indicação, uso e reprocessamento de conteúdo digital nos dias de hoje.
Enxergo aqui uma oportunidade histórica de provermos uma solução tecnológica em condições de responder aos desafios dos novos paradigmas, o que muitos chamam de economia criativa, mas que independente do nome deve necessariamente prever e estimular os arranjos de compartilhamento e construção colaborativa do conhecimento.
Neste cenário, o foco não deve estar no controle dos fluxos criativos, e sim no reforço de atribuição da identidade dos criadores, que somos todos nós.
A tecnologia, especialmente na lógica dos padrões abertos e do software livre, tem resposta para estas demandas. Mas estas respostas, da forma como às precisamos, não serão desenvolvidas pelas corporações que se criaram neste processo de agregação e apropriação da contribuição ‘anônima’.
Enfim: na cultura digital, “Programe ou seja Programado”, não é mesmo?
Será que ainda existe a possibilidade de uma alternativa a este cenário dominado pelos grandes players da Internet? Na minha opinião, o papel do CGI.br nesta reflexão é central.
Seguimos conversando.
Post de José Murilo em 15/09/2011, recuperado do blog ‘Ecologia Digital’ original (ecodigital.blogspot.com), com links recuperados via Wayback Machine (Archive.org)
Post no Blogspot: https://ecodigital.blogspot.com/2011/09/o-forum-da-internet-do-brasil-e.html
Contextualização do blogueiro:
Em 2011, estávamos vivendo uma ressaca no âmbito das políticas de cultura digital do MinC. Dilma havia designado Ana de Hollanda como Ministra da Cultura, e a relação da nova ministra com o ECAD resultou em um bloqueio no MinC à menção de uso das licenças Creative Commons nos projetos do ministério. A sinalização negativa da nova gestão em relação às pautas do movimento articulado pelo Fórum da Cultura Digital Brasileira (2009-2010) causou enorme impacto em coletivos recém mobilizados e hiperconectados, e o resultado foi que Ana de Hollanda ganhou adversários barulhentos na internet.
A desarticulação da política de Cultura Digital do MinC, e a consequente ausência do ministério em um campo que estava mobilizado para realizar avanços concretos nas políticas digitais, abriu espaço para que outros articuladores propusessem a sequência do movimento. Eu colocava grande esperança na realização do I Fórum da Internet do Brasil, observava os movimentos em torno do nascente ‘Diáspora’, e sonhava com um “um protocolo aberto e distribuído de identidade (open – user-centric – identity) como plataforma pública nacional”.
Nos anos seguintes após a blogada acima (2012-2016), propusemos no MinC o caminho da gestão da identidade centrada no usuário (ID Cultura / login cidadão) para a implementação do Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais – SNIIC (na sequência, Mapas Culturais), mas as condições adequadas em termos de tecnologia, e em termos de mobilização política, não mais estiveram reunidas no MinC como aconteceu em 2009.
O MinC de Gil e Juca (em Lula 2), é preciso dizer, conseguiu alinhavar um arranjo político talvez único no mundo, para pensar e atuar em política pública de governo para a Internet. Se abriu à reflexão da questão do direito autoral no digital à luz do Creative Commons — tendo mandato para tal, e com autoridade passou a influir diretamente nas decisões sobre banda larga (MiniCom), governança da Internet (Itamaraty, MCTI), software livre (comunidade open source espalhada no governo), e conteúdos digitais, conceito que integrava as cadeias produtivas dos setores do audiovisual (cinema e TV), animação, jogos eletrônicos, música e virtualização (atuando no âmbito dos ministérios da Fazenda, e Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior). Este MinC de Gil e da cultura digital brasileira atuou com destaque no cenário internacional, e contando com a retaguarda de um articulado e entusiasmado ativismo da #culturadigitalbr, logrou promover a construção aberta de um Marco Civil da Internet que veio a ser referência mundial. Foi bom viver aquilo.
Hoje estamos realizando experimentos com o ActivityPub, e novamente refletindo sobre a possibilidade de execução de uma política pública de cultura digital aliada à lógica dos protocolos abertos, e, de certa forma, também à gestão da identidade digital — na perspectiva da persona na rede social.
Em 2024, no Instituto Brasileiro de Museus, as perspectivas parecem promissoras: “Fediverso: um experimento com redes sociais descentralizadas, e museus“.